Comecei a trabalhar na VEJA como repórter, para uma estadia em duas fases distintas que somaram 17 anos. Fui editor executivo, correspondente internacional em Paris, redator-chefe. Fora da revista desde outubro de 1999, apoio integralmente o ato de repúdio marcado para hoje, em frente à editora Abril, dona da VEJA. A razão é simples. Não se trata de um protesto contra o jornalismo mas a denúncia de uma política perversa, que se vale do jornalismo para comprometer os valores da democracia.
Através da capa “A Morte Dupla”, onde acusa Lula de se esconder atrás da ex-mulher falecida em fevereiro para fugir de acusações furadas sobre o triplex do Guarujá, mais uma vez a revista alterou sua atividade principal. Abandonou as prerrogativas do jornalismo para assumir o papel de instrumento da propaganda política, de quem não tem compromissos com os princípios da profissão nem zela pela credibilidade de suas informações. A capa é parte de uma falsificação destinada a atingir a credibilidade de Lula.
Como toda pessoa que acompanha o caso já teve oportunidade de tomar conhecimento, fosse em conversas com amigos da família, fosse com jornalistas interessados em saber o que tinha para dizer, Marisa jamais escondeu uma realidade básica: toda iniciativa para comprar a cota do imóvel foi sua, e não do marido. Pessoas ligadas a família já me confirmaram isso.
Cabe denunciar VEJA como ente político, como personagem nocivo do momento que o país atravessa — pelas mesmas razões pelas quais cabe denunciar os pronunciamentos de Jair Bolsonaro, Marcos Feliciano e outros perigos-públicos para a democracia e o debate político.
É bom recordar que não foi a primeira vez que a VEJA age dessa maneira em relação a uma liderança dos trabalhadores nem em relação a Lula. Os exemplos recentes são conhecidos e levam ao “Eles sabiam” da reta final campanha de 2014, ultima esperança do PSDB para virar um pleito apertado até o último voto. Para ficar num caso antigo e exemplar.
Em março de 1981 quando um tribunal militar condenou os líderes do Sindicato dos Metalúrgicas de São Bernardo a três anos e meio de prisão por terem conduzido uma greve considerada ilegal pela Justiça do Trabalho, a revista aproveitou a ocasião para publicar em sua Carta ao Leitor uma crítica bem ao gosto da ditadura. Em linguagem policialesca, fez críticas à “costumeira balbúrdia de grupelhos extremistas, clérigos de esquerda, políticos oportunistas e teóricos diversos tentando influir e mandar no movimento sindical”.
A principal notícia do julgamento de 1981 é que, havia ocorrido uma intervenção ilegal dos comandantes militares sobre a Auditoria, para forçar uma pena mais dura contra Lula.
O juiz titular, que nos dias anteriores comentara com colegas que achava que os sindicalistas até mereciam ser punidos, mas por uma pena mais branda, com base na Lei de Greve, acabou tirando férias providenciais. Em função disso, o caso ficou com o substituto, favorável a aplicação das regras mais severas da Lei de Segurança Nacional. A informação sobre a troca de juizes saiu na VEJA, ainda que bem escondida, no 15o. parágrafo.
Já se fora o tempo da censura prévia, é bom recordar. Como notícia, no puro jornalismo, deveria ter sido a manchete. Era um escândalo e não uma fofoca de bastidor. Mas a revista se rendera a uma ditadura que, após medidas de flexibilização da situação política, como a Anistia, ensaiava um caminho para recompor forças e frear os esforços de democratização.
Na mesma edição, saiu um segundo texto, carregado de metáforas, onde era possível entender a questão de fundo. Ali a revista advertia seus leitores e, em, particular, a oposição. Referindo-se a pressões por maiores liberdades e direitos como se fosse uma espécie de confronto, VEJA escreveu que “para cada ataque, estudantil, político, sindical, ou seja lá o que for, haverá uma resposta rápida e, para falar claro, sempre mais violenta.” Conforme a bola de cristal da revista, já aderindo a nova ordem, “as leis que valem são” as da força. E será assim “por muitos anos”.
Em maio de 2017, VEJA também fez o possível para agradar aos poderes de exceção que emanam da Lava Jato. “A morte dupla” nada mais é do que uma reverência à senha midiática lançada pelo procurador Luiz Fernando dos Santos Lima, um dos mais destacados da força-tarefa.
Numa iniciativa compreensível para tentar desqualificar o competente depoimento de Lula a Sérgio Moro, depois do julgamento o procurador lançou uma crítica em tom de lamento, uma típica lágrima de crocodilo. Referindo-se às “afirmações em relação à Dona Marisa, a responsabilizando por tudo, “Luiz Fernando dos Santos Lima disse: ” é um tanto triste de se ver feitas nesse momento até porque, como o ex-presidente disse, ela não está aí para se defender”. Ele ainda teve o cuidado de incluir a expressão “infelizmente” numa frase que pretendia ser sentimental, mas era acima de tudo injusta e cruel.
Com “A morte dupla”, VEJA consolida uma nova regressão notável para sua história — e prejudicial ao país. Escondida num parágrafo acessível apenas aos leitores mais atentos com paciência para vencer pelo menos 15 parágrafos, sob a ditadura de 1981 a revista trouxe uma informação que interessava ao Brasil e aos brasileiros, ao mostrar a intervenção do comando militar num julgamento de extrema relevância naquele momento. A revista apoiava a repressão absurda a Lula e aos líderes operários — mas deixava perceber que havia uma farsa em tudo aquilo, uma combinação de acertos entre generais arrogantes e magistrados submissos.
Em 2017, em torno do mesmo personagem de 36 anos atrás, faz pura propaganda para desmoralizar uma liderança que é alvo de uma perseguição que pode marcar a fronteira entre democracia e ditadura.
POR PAULO MOREIRA LEITE
Jornalista e Escritor
Publicado nos sites, Brasil247 e Diário do Centro do Mundo
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