No final do século XIX ocorreu uma combinação de acontecimentos que influenciou decisivamente a formação dos espaços urbanos no Brasil. O fim da escravidão empurrou os negros do campo para as cidades. Ao mesmo tempo, imigrantes europeus desembarcaram no país para trabalhar na lavoura e nas primeiras indústrias. A população urbana cresceu em ritmo acelerado, pressionando...a demanda por moradia e serviços públicos.
Naquele cenário, ganhou força junto às elites a ideia de transplantar para nossas cidades o modelo de planejamento de Paris, que combinava saneamento, embelezamento, circulação e segregação territorial. Esta ideologia foi colocada em prática no Rio de Janeiro durante a reforma urbana promovida pelo prefeito Pereira Passos (1902-1906), e trouxe como consequências a remoção de diversas famílias pobres das áreas centrais, o surgimento das primeiras favelas e o adensamento dos subúrbios cariocas.
As remoções forçadas no Rio continuaram nas décadas seguintes, impulsionadas pela especulação imobiliária, e viriam a consolidar o estigma de cidade partida, étnica e socialmente compartimentada. Uma trajetória só interrompida na redemocratização, ao final do século XX, quando teve início um processo de intensa mobilização social para a construção de uma nova cultura de direitos. A moradia, um de seus elementos fundamentais, foi enfim consagrada enquanto um direito fundamental na Constituição de 1988, contrapondo-se ao modelo de urbanização excludente que concentrou grandes contingentes de pessoas pobres nas áreas periféricas, sem jamais integrá-las efetivamente à malha da cidade. A partir de então as comunidades populares passaram a ser encaradas como territórios a serem incorporados à cidade.
O Brasil, no entanto, é um país em transição. Sob muitos aspectos somos uma nação moderna, pronta para um novo salto de desenvolvimento com distribuição de renda e erradicação da miséria. Mas ainda possuímos considerável contingente de ouvidos sensíveis a ideias retrógradas, como é o caso das remoções. A elite econômica de hoje, assim como os patrimonialistas do passado, advogam que há um preço para estar perto do progresso. Como o trabalhador não pode pagar por esse preço, ele não tem o direito de morar próximo ao seu local de trabalho ou perto das melhores escolas, hospitais e outros serviços da cidade. A “solução” defendida é a aplicação da velha receita: uso da força, pé na porta e caminhão de mudança. Forçando as famílias a recomeçar suas vidas em locais nos quais as carências de todos os tipos e a escassez de direitos são as principais características. Não resolve o problema, mas ao menos o torna invisível, aumentando a cotação da cidade para venda nos stands globais.
A liberação de terra bem localizada para grandes negócios tem levado a um aumento exponencial de remoções forçadas. O conflito fundiário que opõe a tradicional comunidade do Horto Florestal à atual direção do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico (IPJB), na Zona Sul do Rio, é emblemático neste sentido. Pois, a despeito da mediação conduzida com legitimidade, rigor técnico e respeito ao meio ambiente pela Secretaria de Patrimônio da União (SPU), é claro o incômodo entre os ‘poderosos’ da região. Para estes, as conquistas no campo do direito à moradia devem ser ignoradas ou tratadas de forma seletiva.
O maior absurdo na argumentação dos que defendem a remoção é a tentativa de inverter a historicidade da região. Não é verdade que os moradores são “invasores”. Tanto o Horto quanto o Jardim Botânico estão em área da União, sem limites formais demarcados. A principal motivação do conflito é justamente a intenção do IPJB de expandir sua área de visitação sobre terras que, pela visão do Governo, poderiam cumprir outra função social. No entanto, embora os estudos da SPU indiquem que é possível conciliar estes interesses, o Instituto rejeita o diálogo e procura rotular a comunidade como um corpo estranho ou uma unha encravada, que deve ser removida para a purificação da cidade.
E para que mesmo? Os patronos da remoção se travestem da falsa defesa do meio ambiente para alcançar seus mal disfarçados objetivos. Querem, embora não tenham coragem de assumir publicamente, valorizar ainda mais os condomínios luxuosos do Alto Jardim Botânico e criar uma área de lazer reservada às elites, ainda mais exclusiva do que o Central Park de Nova Iorque e o Hyde Park de Londres. Pois enquanto nestes parques estrangeiros a entrada e livre, aqui, há muito, temos roletas e cobrança de ingressos.
Cada homem e cada mulher vive apenas uma vez. Mas há os que buscam, por seus atos, deixar o nome para a posteridade. É o que desejar o atual presidente do IPJB. Ser lembrado como o herói que tirou a moradia dos humildes para entregar aos ricos da Associação de Amigos do JB um novo espaço de lazer, o Parque Lizst. Ou Parque Jânio Quadros, lembrando que o presidente do IPJB chegou a forjar sua renúncia para constranger a ministra do Meio Ambiente.
Da mesma forma, nos causa profunda estranheza a forma como se comporta o Tribunal de Contas da União, órgão de assessoria do Congresso Nacional nas funções de controle externo, que no julgamento de ação sobre o conflito extrapolou seu papel constitucional e usurpou poderes reservados ao Executivo.
O direito à moradia no Horto está ancorado em ampla legislação, nacional e internacional, que garante aos moradores a permanência e a posse da terra. Estamos seguros de que o Governo, por meio da SPU, vai atuar de forma equilibrada e transparente para resolver o conflito e conciliar a ampliação do IPJB com os direitos dos moradores do Horto. Pois a desconstituição de direitos abre precedentes perigosos; sabemos como começa – sobre os mais vulneráveis – mas é difícil prever como pode terminar.
Deputado federal Edson Santos (PT-RJ)